E prometo que amanhã volto ao normal.
O dia que eu mais temia chegou.
Ontem foi o último dia da minha vida tal como a conheço. E foi um bom dia! Ainda bem!
Hoje, um simples telefonema mudou-a. Da mesma maneira que se começa a fazer uma viagem assim que damos início aos planos, a minha vida mudou hoje. E nunca mais vai voltar a ser a mesma.
Andava a pressentir isto há já uns meses mas não imaginei que fosse assim.
Devia estar aos pulos de contentamento e estarei amanhã. Na verdade, assim que penso nisso fico feliz sim.
E orgulhosa.
O meu ego fica lá em cima.
Mas não consigo deixar de ficar triste. Só hoje, prometo.
Hoje preciso chorar. Faz-me falta. Limpa a alma. Deixa espaço para a felicidade que chegará amanhã, tenho a certeza, depois de uma boa noite de sono sob o efeito dos ansiolíticos que tomarei daqui a pouco.
O certo é que foi quase uma década. E não se abandona uma década assim sem mais.
Não é novidade para mim e sei que acabarei por me adaptar e por reconstruir a minha vida como tantas outras vezes já fiz.
Mas quase uma década é quase uma década e durante estes quase 10 anos acabei por me esquecer que as partidas eram assim. Esqueci-me ou fiz por esquecer, na ânsia de me enganar e de me convencer a mim mesma que seria aqui que acabaria os meus dias. Que pertencia aqui.
Mas não.
Sou uma cidadã do mundo e deveria ter sido mais esperta. Sabia que não podia criar raízes. Sabia como seria doloroso mais tarde. E tinha a certeza que este dia chegaria.
Ainda aguentei uns quatro anos. Mas acabei por não ceder à tentação e achei que devia viver cada minuto como se fosse o último e construir aqui uma vida. E construí-a. E encontrei aqui a minha família de adopção.
Ontem à noite pensava que este até seria um bom momento para deixar Alguidares. Resolvidas que estão todas as minhas pequenas tragédias pessoais, parto com uma boa imagem da cidade e poderei recordar sempre os anos aqui passados como os melhores da minha vida. Pelo menos até agora. Tal como até agora tinha feito com Alguidares de Cima.
Aqui cresci.
Aqui cheguei criança e daqui parto mulher.
Sofri muito. Chorei muito. Penei como uma condenada.
Mas também ri muito. Também fui muito, muito feliz!
Encontrei pessoas vis e dementes.
Mas também fiz bons amigos. Dos melhores que há. E com eles, e com elas (sobretudo com elas, minha querida e adorada Cremilde), vivi alguns dos melhores momentos da minha vida.
Dou por mim a olhar para todas as pessoas que me passam à frente: a vida delas é igual. Daqui por 15 dias, tudo estará igual. Tal como eu pensava que estaria até esta tarde. Muitas nem se aperceberão que eu já cá não estou.
Percorro as mesmas ruas de sempre com a sensação de despedida.
E com a mesma sensação me despeço das minhas pequenas rotinas que me dão tanto prazer.
Tudo vou fazendo "pela última vez".
Começou a contagem decrescente.
É isto que sente um emigrante, suponho. Mas esse tem mais tempo para se adaptar à ideia. Para preparar a partida. Para se despedir.
Sinto-me como um condenado a quinze dias da execução.
Sei que não é o fim do mundo e que é para o meu bem.
Sei que é uma oportunidade que não posso desperdiçar.
Sei que serei também ali muito feliz.
Mas não posso deixar de sentir porque quem não se doi nem se sente não é filho de boa gente.
Mas sei também que não é um passeio no parque.
Sei que não vou trabalhar por uns meses para depois voltar.
Sei que o mais provável é não voltar, embora ainda recuse aceitar essa ideia.
Não! Eu hei-de voltar!
Puta de vida esta que nos obriga a tomar decisões dolorosas quando somos crescidos!
Porque não a tomam por mim para que possa ser uma criança revoltada e traumatizada e ter direito a drogar-me e a fazer terapia?
Sei também que tenho duas opções: lamuriar-me e chorar durante os próximos quinze dias, ou aproveitar o tempo que me resta ao máximo. Rir muito, estar com toda a gente, ir muito à praia e ao parque e à horta.
Beber muito e comer ainda mais, que se lixe a dieta.
E visitar tudo o que não visitei durante estes quase 10 anos.
E fazer tudo o que não fiz.
E é esta segunda opção a que escolho, claro.
Mas por hoje, permito-me chorar. Só hoje, prometo. Quero queimar as pestanas e chorar muito.
Porque Alguidares de Baixo pode ser tudo o que quiserem.
Uma aldeia.
Fechada.
Conservadora.
Provinciana.
Mas é a aldeia fechada, conservadora e provinciana que há quase 10 anos escolhi para viver e que me acolheu de braços abertos.
E parafraseando alguém cujo nome não me recordo (que eu para isto tenho um jeitinho...):
Pode não ser a aldeia mais bonita do mundo, mas é a MINHA aldeia.
Nem que seja por adopção!